quinta-feira, 10 de julho de 2008

Minha nossa, a semana ainda está rendendo!

Assim como demorei um pouco para comentar o texto da Veja, também já tinha visto um artigo do Le Monde republicado pela Falh... oops, Folha de S.Paulo. Comento agora. Também é só para assinantes, eu recebi por e-mail. Segura que é meio grande.
Bento 16 resgata tradicionalismo

Vinte anos após excomunhão de bispo anti-reforma, liturgia conservadora volta a dominar Santa Sé

Papa alemão apóia retorno à tradição como resistência à secularização e ressuscita o modelo de uma Igreja Católica mais autoritária

HENRI TINCQ
DO LE MONDE

Vinte anos atrás, em 30 de junho de 1988, o bispo francês Marcel Lefebvre desafiou a autoridade do papa João Paulo 2º. Em seu seminário de Ecône, na Suíça, reduto do integrismo católico, consagrou quatro bispos para garantir a continuidade da tradição contra o concílio Vaticano 2º, que chamava abertamente de herético.
Anos de discussões com a Cúria romana (sobretudo com Josef Ratzinger) foram jogados por terra. Os fiéis se ajoelhavam, beijavam seus anéis. Ao mesmo tempo, um decreto fulminante de Roma excomungava Lefebvre (morto em 1991) e aqueles novos bispos, que passaram a ser cismáticos (frutos de um cisma).
Tem um erro aí. O Papa não excomungou ninguém. Só deixou claro que, por causa das ordenações sem mandato papal, Lefebvre, o brasileiro dom Antônio de Castro Mayer e os quatro bispos ordenados (Fellay, Williamson, de Mallerais e um outro cujo nome não me vem à mente agora) já estavam automaticamente excomungados. O que o Papa fez foi simplesmente deixar clara a situação.
Duas décadas mais tarde e apesar dos fracassos sucessivos das tentativas de reconciliação empreendidas por João Paulo 2º e, sobretudo, por Bento 16, o tradicionalismo, se não ganhou novos textos, conquistou mais espaço nas cabeças.
Enganaram-se aqueles -e eram muitos, na época- que interpretaram aquele episódio dos clérigos de Ecône, 20 anos atrás, como expressão de um folclore superado, destinado à lata de lixo da história, como nostalgia beata do incenso, do hábito e da missa em latim.
Os tradicionalistas continuam presentes. Majoritariamente francês em sua origem -devido à nacionalidade de Lefebvre e às reações francesas contra a liturgia moderna-, o fenômeno ganhou mundo.
A fronteira está cada vez mais porosa, com manifestações de fé e devoção encorajadas por Bento 16, por um clero jovem e por comunidades novas que defendem o retorno à tradição como modo de resistência à secularização.
Seminários da Fraternidade Santa Pio 10, núcleo irredutível do cisma, pipocaram na Alemanha, na Austrália, nos Estados Unidos (no Minnesota) e na América Latina. As gerações de sacerdotes (quase 500) que saem deles e de fiéis (600 mil, segundo fonte do Vaticano) herdeiros dessa dissidência vêm se renovando e já se instalaram em mais de 30 países.
Atenção, revisão! "Santa Pio X"? De qualquer modo ainda é melhor que a "Fraternidade do Santo Pio" que eu li uma vez.

Hã? Eu?

Antiecumenismo
Tipicamente europeu, esse modelo de igreja autoritária, antiecumênica e antimoderna, dominada pela figura do santo padre encarregado do sagrado, foi exportado. Para os tradicionalistas, ele é o avalista dessa parte de mistério, de emoção e de beleza que é própria de toda tradição e que a missa moderna teria sacrificado.
Como assim anti-ecumênica? Ecumenismo é o diálogo com o objetivo de trazer de volta os protestantes e ortodoxos à Igreja Católica. Garanto que com isso Lefebvre e o povo lá da SSPX concorda. O problema é que uns porra-loucas ligados à maldita TL começaram a chamar de "ecumenismo" um tanto-faz doutrinal que consistia em dizer que tudo leva a Deus, que não importa no que você acredita... e, por incrível que pareça, os rad-trads caíram nessa lenga-lenga, apesar de tudo o que dizem os documentos do Vaticano sobre o assunto.
Num mundo em explosão, o latim reencontrou o lugar de língua universal, e as concessões feitas às tradições culturais na Índia ou África empurrariam em direção à tradição os fiéis ligados a uma liturgia e um catecismo únicos.
Os tradicionalistas encontraram um aliado no papa alemão. Os fiéis se espantam com as audácias cometidas por Bento 16 em matéria litúrgica, na contracorrente de toda uma evolução registrada desde o Vaticano 2º. O mestre de cerimonial de João Paulo 2º foi substituído.
Bento 16 reinstaurou o trono de cor púrpura, bordejado de ouro, dos papas anteriores ao concílio, renunciou ao bastão pastoral de seus predecessores, símbolo de uma Igreja mais humilde, e trouxe de volta a férula em formato de cruz grega usada pelo papa mais reacionário do século 19 (Pio 9).
Alguém pode me explicar o que faz de Pio IX um "reacionário"? E por que a cruz pastoral de Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II representava "uma Igreja mais humilde"?
Bento 16 restaurou o costume da distribuição da hóstia de joelhos e pela boca, destinada a tornar-se a prática habitual das celebrações pontificais, declarou no LOsservatore Romano seu chefe de cerimonial, monsenhor Guido Marini.
Eu devo estar pirando. Eu podia garantir que a comunhão de joelhos e na boca já era prática habitual das celebrações pontificais mesmo na época de João Paulo II...
A França corre o risco de ficar estarrecida quando Bento 16 visitar o país, em setembro.
Um ano mais tarde, o decreto papal de julho de 2007 liberalizando o rito antigo em latim certamente não provocou manifestações acaloradas. Na França, esse chamado em favor da missa antiga teria sido ouvido por apenas 0,1% dos fiéis.
O número de paróquias em que ela é celebrada há um ano não passa de 40, somada às 132 que já a propunham.
Mas os tradicionalistas não desistiram de sua guerra insidiosa contra os bispos, os padres e a Cúria modernistas. Eles rejeitaram o protocolo de acordo proposto por Roma para solucionar o cisma, que lhes exigia apenas que se comprometessem a respeitar a autoridade e a pessoa do papa.
Vítima de um jogo interminável de disputas, Bento se viu pressionado a anular as excomunhões de junho de 1988 e atribuir aos padres tradicionalistas um estatuto sob medida de prelado nullius, que lhes garantiria a vantagem dupla de serem reconhecidos por Roma e se manterem independentes dos bispos.
Se viu "pressionado" a fazer o que? Bom, em primeiro lugar, as excomunhões nunca foram anuladas. É verdade que a SSPX pede a anulação, mas do jeito que o texto foi escrito (ou traduzido), parece que a anulação já ocorreu.
Seria realmente esse o papa que nunca teria conseguido libertar-se de seu modelo bávaro, cujo cotidiano girava em torno da missa, da família, do Angelus dos campos e da música das cidades?
É duro imaginar que esse filósofo que dialogou com figuras do pensamento laico (Florès dArçais na Itália, Habermas na Alemanha), que orou numa mesquita (em Istambul), visitou sinagogas, escreveu encíclicas em tom moderno sobre o amor, possa amanhã abrir a porta aos cismáticos de 1988.
E por que é duro imaginar isso? A Igreja abre as portas a todos os que desejam fazer parte dela. Abre as portas aos anglicanos insatisfeitos com os rumos que Canterbury vem tomando. E abre as portas inclusive os cismáticos da SSPX. Abriria as portas até mesmo aos teólogos da libertação, se eles não odiassem tanto a Igreja e o Papa.
Em todas as religiões, a liturgia é a expressão de uma fé. Ela não pode ser dissociada da doutrina. Acontece que a direção foi determinada há mais de 40 anos, no concílio Vaticano 2º, mantido por Paulo 6º e João Paulo 2º. Hoje, reina em Roma um neoconservadorismo incentivado não tanto pelo papa quanto por grupos que nunca renunciaram à igreja autoritária do passado. A reintegração dos cismáticos corre o risco de ser efetuada ao preço de uma erosão das conquistas dos últimos 40 anos. Seria o triunfo póstumo de Lefebvre.
Engraçado -- se a direção foi determinada pelo Vaticano II, maravilha! Pois o Vaticano II pedia órgão e canto gregoriano; pedia a manutenção do latim, pelo menos no cânon. Não pedia guitarra, bateção de palma e leigos de jaleco distribuindo comunhão.

Mais uma prova de que jornalistas mal-informados acabam atribuindo ao Concílio coisas que nunca passaram pela cabeça dos padres conciliares.

5 comentários:

Captare disse...

Terrível, este artigo! Mas muito bons os reparos que você fez a ele!

É claro que teria muitíssimas correções a mais que deveriam ser feitas os sr. Tincq, mas fugiria do escopo deste blog.

O bispo da FSSPX do qual você não lembra o nome é Dom Galarreta. Talvez você não se lembre porque é o mais quietinho dos quatro, quase não fazendo declarações públicas

Rodrigo disse...

É, e olha que esse cara deve se considerar um "vaticanista"!
Por outro lado, foi divulgada entrevista de Castrillon dizendo que o papa quer a missa antiga em todas as paróquias.
Confira: www.perfasetpernefas.blogspot.com

Anônimo disse...

Que textinho, ein? Poucas vezes vi tanta gritaria barata junta.

É interessante notar a hipocrisia dos ditos modernistas: reintegração dos que pensam como eles é justo. Reintegração dos que pensam diferente, mesmo que desejem voltar à Igreja, é absurdo. Cadê a "Igreja pra todos" que tanto pregam?

Anônimo disse...

Quando distribuição de comunhão de joelhos e na boca foi praxe no pontificado de João Paulo II?

Anônimo disse...

Talvez ele quis dizer que "distribuição de comunhão de joelhos e na boca" tenha sido "praxe" somente nas capelas e priorados da FSSPX.
Total desconhecimento da situação canônica da FSSPX junto à Roma.

Fausto