sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

A pressa é inimiga da perfeição, diz o ditado

Das grandes agências internacionais, a France Presse parece ser a primeira a perceber os fortes rumores sobre uma atitude do Papa em relação à excomunhão dos bispos da Fraternidade São Pio X, um grupo cismático fundado pelo falecido arcebispo Marcel Lefebvre e que celebra exclusivamente a missa tridentina. Em 1988, Lefebvre e o bispo brasileiro Antonio de Castro Mayer ordenaram, sem autorização do Papa, quatro bispos. O ato dava excomunhão automática, que foi confirmada por João Paulo II no motu proprio Ecclesia Dei.

O texto da France Presse já foi republicado por várias fontes online, como o Último Segundo. Exceto o problema um pouco óbvio de dar como certo algo que ainda não está confirmado (eu sei, o Andrea Tornielli é muito bem informado, mas tem coisas em que é melhor dar uma de São Tomé), a matéria tem outras imprecisões:


O decreto já teria sido assinado pelo Sumo Pontífice, de acordo com o jornal. O texto suprime a excomunhão para os quatro bispos ordenados pelo monsenhor Lefebvre, entre eles seu sucessor Bernard Fellay.
Um detalhe que pode (e certamente vai) passar despercebido pela grande imprensa é que existe uma diferença entre anular uma excomunhão e declarar sua nulidade. Anular significa que houve excomunhão e que agora ela foi retirada. Declarar nulidade significa dizer que a excomunhão, na verdade, nunca ocorreu. E a verdade é que ninguém sabe com certeza se Bento XVI vai anular as excomunhões ou declará-las nulas (se é que vai fazer alguma coisa)


Anular a excomunhão constitui um passo importante para a reconciliação com o movimento tradicionalista e dogmático
Como assim "dogmático"? O que a AFP quis dizer com isso?


que tem 460 padres espalhados por quase 50 países e tem sua maior comunidade na América Latina, em particular na Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e República Dominicana.
Eu podia jurar que as maiores comunidades da SSPX estavam na França e nos Estados Unidos. Talvez juntando a América Latina toda o número fique maior, mas se considerarmos países, acho que minha impressão se confirma.

(corrigido em 26/1) A AFP não menciona que há alguns anos os tradicionalistas brasileiros, reunidos em torno de dom Antonio de Castro Mayer, um dos bispos excomungados em 1988, se entenderam com Roma, tornando-se a Administração Apostólica São João Maria Vianney.

Desde o início de seu pontificado em 2005, Bento XVI fez vários gestos de abertura em direção ao movimento católico fundado pelo arcebispo francês, entre eles a introdução em julho de 2007 da missa em latim, uma exigência dos 'lefebvristas'.
Mas de novo? Para informação da AFP, a missa nova, do missal de 1969, também é em latim. O que existe é autorização do Vaticano para cada país celebrar em seu próprio idioma, mas a língua padrão da liturgia católica ainda é o latim. O que a AFP quis dizer é "missa tridentina", rezada segundo o missal de 1962, e que é rezada exclusivamente em latim, com apenas algumas partes em vernáculo.

Além disso, a missa tridentina não foi "introduzida" em 2007. Apenas houve uma permissão universal para sua celebração. Antes disso, dependia de cada bispo permitir ou não a missa tridentina em suas dioceses. Agora, qualquer padre pode rezar segundo o missal de 1962 sem depender de autorização episcopal.


Em junho do ano passado, o Vaticano abriu mão de exigir dos adeptos de Lefebvre, reunidos na Fraternidade de São Pio X, fundada em 1969 em Econe (Suíça) pelo monsenhor Lefebvre, o reconhecimento das disposições do Concílio Vaticano II, celebrado entre 1962 e 1965 e que modernizou a Igreja.
De onde saiu isso? Nunca ouvi nada semelhante, e olha que eu acompanho as notícias sobre a Igreja... se tivesse havido algo semelhante, a SSPX teria sido a primeira a trombetear a notícia por todo canto.

De qualquer modo, aguardemos o que vem por aí. O boato mais forte diz que o anúncio seria feito domingo. Apostas?

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Novidade tecnológica no blog

Seguindo sugestão da Julie, adicionei o FeedBurner no blog (primeiro tive que descobrir o que raios era FeedBurner). Agora você pode ser avisado por e-mail quando o blog for atualizado, basta colocar o seu endereço na caixinha que está logo abaixo da imagem de Santa Catarina de Sena. As atualizações estão programadas para chegar à noite.

Com certeza o tal do FeedBurner deve ter muito mais recursos tecnológicos que isso, mas eu sou meio lerdo com essas novidades. Já fiquem contentes de eu ter conseguido colocar a janelinha aí do lado.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Agência Estado canoniza a irmã Lindalva

Hoje vários jornais, inclusive a Gazeta do Povo, deram a notícia de que o Vaticano está para declarar irmã Dulce "venerável". Como por algum motivo não acho a notícia no site da Gazeta, vai o link do Último Segundo mesmo. O texto é igual, exceto por um pequeno pormenor que conta a favor do US (vejam mais abaixo).

A gente começa a ler e pensa "puxa vida, olha só, eles estão se preocupando em descrever direitinho o processo", afinal dizem que a declaração de "venerável" é o penúltimo passo antes da canonização, e que a beatificação é o último passo. Mas da metade pra frente a coisa degringola:


Com o título de venerável, a baiana é reconhecida pelo Vaticano como uma serva de Deus (beata) que teve a vida pautada por realizações em benefício do próximo.
Lá no Último Segundo o camarada que colou esse texto no sistema interno deve entender de religião, porque removeu o (beata) -- justamente a parte problemática, pois, como sabemos, "servo de Deus" é uma coisa, "beato" é outra. Beato é quem foi beatificado.

Mas o pior está por vir:


Como venerável, o Vaticano dá sinais positivos para que ela se torne santa, como aconteceu com a Irmã Lindalva (canonizada em 2007).
Não sei se os parênteses foram obra da Agência Estado ou do padre Manuel, da Arquidiocese de Salvador. De qualquer maneira, Lindalva foi beatificada em 2007, e não canonizada. É o tipo de coisa que devia causar estranhamento no repórter, ou no editor, pois só o Papa canoniza, e em 2007 ele esteve aqui pra canonizar Santo Antônio de Sant'Anna Galvão, e não a irmã Lindalva.

Será demais exigir que os jornalistas saibam que só o Papa pode canonizar?

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

E olhem que a Semana Santa ainda está longe...

... mas o Luís Milman, doutor em Filosofia e professor da UFRGS, já acha que pode falar do que não entende. Tudo bem que ele escreveu um artigo muito legal sobre o Obama hoje na Gazeta do Povo, que no blog dele ficam desmascaradas todas as palhaçadas da mídia sobre a guerra em Gaza, mas a julgar pelo que ele publicou anteontem, devia se limitar à política...

Vamos lá: o texto dele se chama Bento XVI e a Oração pelos Judeus. O tema é a oração da Sexta-Feira Santa pela conversão dos judeus no rito tridentino.

É preciso lembrar que a oração pelos judeus é parte da liturgia da Sexta-Feira Santa há muito tempo, e não foi abolida nem pelo Concílio Vaticano II, nem pela reforma litúrgica de 1969. O que aconteceu foi uma mudança nas palavras da oração.

Até 1959, rezava-se pelos "pérfidos judeus". Vocês sabem que, em português, "pérfido" tem uma conotação negativa, assim como em outras línguas modernas. Mas em 1959 rezava-se apenas em latim, então é necessário que se busque o significado latino da expressão. E, em latim, "pérfido" tem o significado principal de "sem fé" - o que, devemos reconhecer, corresponde à realidade, já que os judeus não reconhecem Cristo como o Messias.

Mas em 1959 João XXIII mudou a oração e retirou o adjetivo. Isso quer dizer que, se o missal tridentino usado atualmente é o de 1962, ele já não traz a expressão. Ou seja, um dos motivos de gritaria simplesmente não existe. Um trecho da oração do missal de 1962 dizia:

[Deus] elimine a cegueira deste povo para que, reconhecida a verdade de sua luz, que é o Cristo, saiam das trevas.
Em 2008, Bento XVI modificou especificamente esta oração pelos judeus, que ficou assim (traduzida em português, porque ela continuará a ser rezada em latim):

Oremus et pro Iudaeis (Rezemos pelos judeus)

Que o Deus nosso Senhor ilumine seus corações para que reconheçam Jesus Cristo, Salvador de todos os homens. Deus onipotente e eterno, vós que quereis que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade, concedei que, entrando a plenitude dos povos em cossa Igreja, todo Israel seja salvo.
Então, nós temos quatro orações pelos judeus. Cuidado pra não se perder:
1. a oração tridentina, pré-1959, que falava dos "pérfidos judeus";
2. a oração tridentina, pós-1959, modificada por João XXIII, que não tem mais o "pérfidos", mas fala da "cegueira";
3. a oração tridentina, modificada por Bento XVI em 2008, a do "todo Israel seja salvo". Lembro que essa é a oração que está valendo para os fiéis adeptos da liturgia tridentina;
4. e, por fim, a oração pelos judeus no rito novo, que diz:

Oremos pelos judeus, aos quais o Senhor Nosso Deus falou em primeiro lugar, a fim de que cresçam na fidelidade de sua aliança e no amor do seu nome. Deus eterno e todo-poderoso, que fizestes vossas promessas a Abraão e seus descendentes, escutai as preces da vossa Igreja. Que o povo da primitiva aliança mereça alcançar a plenitude da vossa redenção. Por Cristo nosso Senhor.
Resolvido esse problema, sigamos em frente. Milman diz com todas as letras que a oração tridentina em vigor atualmente (3) não é antissemita. Ele diz que as orações anteriores (1 e 2) o eram. Não acho que sejam. Antissemitismo é uma discriminação de raça, e não de religião. Mas de qualquer maneira, como essas duas orações já estão fora dos livros, não precisamos discutir aqui sobre elas.

Mas os rabinos não gostaram sequer da oração (3). Sinceramente, aí não é problema nosso. Na verdade, a oração (3) não é muito diferente da oração (4), pois ambas pedem a conversão dos judeus (o que vocês acham que "plenitude da salvação" significa?). Talvez os rabinos não gostem da (4) também.

Milman continua:

É de se questionar: quais foram as razões do Papa Bento XVI - que pertenceu à Juventude Hitlerista - para tê-lo reintroduzido?
Enquanto Ratzinger for vivo, sempre haverá alguém para retomar essa babaquice de Juventude Hitlerista. Precisamos lembrar que a filiação à Hitlerjugend era obrigatória na época em que Ratzinger era adolescente, e que sem ela os meninos tinham problemas? Milman, leia a autobiografia do Ratzinger e você descobrirá que a família do Papa era totalmente antinazista.

E de que "reintrodução" Milman fala? Da oração pelos judeus? Mas sempre houve oração pelos judeus! Milman fala como se a Igreja tivesse deixado de rezar pelos judeus na Sexta-Feira Santa por alguns anos, e então pum!, Bento XVI, o Papa alemão, vem e reintroduz uma oração...

O que Bento XVI realmente fez?
1. permitiu a utilização universal do missal tridentino de 1962. Bom, lá havia uma oração pelos judeus, rezada uma vez por ano. Assim como há diversas outras orações. Não dava para o Papa reintegrar um missal inteiro e dizer "restauramos tudo, menos essa oração pelos judeus. Vai ficar sem nada no lugar".
2. Substituiu a oração que Milman considera antissemita (a 2) por uma que Milman não considera antissemita (a 3)!

A decisão de Bento XVI contraria a orientação conciliar do Vaticano II, segundo a qual a Igreja e todos os católicos devem lutar pela liberdade religiosa e promovê-la, pois a liberdade de religião expressa a liberdade de consciência.
Milman leu (será que leu mesmo?) a Dignitatis Humanae e entendeu errado. Liberdade de consciência significa que ninguém pode ser forçado a aderir a uma religião contra a sua vontade. Liberdade de consciência não significa renunciar à evangelização, ou renunciar à pretensão de ter a plenitude da verdade. Aliás, o Concílio Vaticano II diz, mais de uma vez, que a Igreja é necessária para a salvação.

Sua preocupação com os judeus é intempestiva.
Por quê? Bento XVI não mandou substituir uma oração antissemita por uma oração que não é antissemita? Isso não é bom?

Não me aprofundo no tema doutrinário
Percebe-se.

Não há porque fazer retornar, a um Missal, uma prédiga tópica que pede pela salvação de Israel (sic).
A Igreja pede pela salvação de todo mundo. Inclusive, a oração da Sexta-Feira Santa, além de pedir pelos judeus, pede também por quem não acredita em Cristo, por quem não acredita em Deus... queria que Milman respondesse: é errado rezar pela salvação dos outros? E lembro que não tem nada "retornando" ao Missal como se algum dia não tivesse estado lá: a oração pelos judeus faz parte da liturgia há uns bons séculos, e nunca foi interrompida.

Esse passo do Papa preocupa
Que passo? Substituir uma oração antissemita (na opinião de Milman) por uma oração que não é antissemita (também na opinião de Milman)?

Bento XVI não é antissemita, estou certo disto. Mas a recuperação da Oração pelos Judeus desperta uma discussão que não aproxima judeus e católicos.
Mais uma vez Milman insiste numa "recuperação" que não houve.

Seria bom para todos que Bento XVI fizessse esforços diplomáticos no sentido de conseguir uma reaproximação com interlocutores judeus, sem enfatizar a profissão de fé que julga a fé dos outros. João XXIII certamente teria agido deste modo.
Milman acha que pode adivinhar como João XXIII teria agido... pois bem, a gente sabe como João XXIII efetivamente agiu: deixou no Missal uma oração (antissemita, segundo Milman) que falava da "cegueira" do povo judeu e pedia que Deus "retirasse o véu que cobre seus corações".

Conheço gente que ficará desapontada...

domingo, 4 de janeiro de 2009

O Rodolfo tinha razão...

... quando me aconselhou a não subestimar os meus colegas neste fim de ano. Meus pais assinam a IstoÉ, e só agora eu tive a chance de ver a matéria publicada na edição de 24 de dezembro, sobre o cotidiano de Nossa Senhora.


Eu sinceramente gostaria de saber quem é o editor dessa área onde trabalha o tal João Lóes. Porque, aqui na Gazeta do Povo, onde trabalho, nós, editores, não aceitamos reportagens que tragam uma série de afirmações simplesmente sem fonte alguma! Vejam essa série impressionante:

Sabe-se que ela era uma dona-de-casa judia que morava na vila de Nazaré, na Galiléia, povoado colonizado pelos romanos. Criava galinhas no fundo do quintal e acordava com o barulho delas, ainda de madrugada, para iniciar suas atividades domésticas. Vivia em condições muito simples. Dormia em uma esteira, num chão de terra batida sobre a palha, numa casa que cheirava a óleo queimado, proveniente de uma lamparina que ela mantinha acesa, acomodada em uma cavidade na parede. Vestia o mesmo traje, independentemente da ocasião: uma túnica de linho, com a qual realizava seus afazeres ou saía para alguma atividade, sem esquecer de colocar o véu, em respeito ao marido. Era uma mãe zelosa e dedicada, que sempre tentou manter o filho próximo de si. Durante a infância de Jesus, gostava que o garoto ajudasse o pai, José, na oficina. Caso não houvesse trabalho, ela recrutava a criança para ajudar nas tarefas domésticas, como fazer farinha de cevada, buscar água na fonte e limpar a casa, que só tinha um cômodo.
Apesar de nunca esquecer que estava criando o filho de Deus, o Messias, nascido para salvar os homens, ela não se intimidava em recriminá-lo. E o fez diversas vezes durante toda a sua vida. Ralhava em público com o menino, principalmente depois que ele desenvolveu o hábito de dar umas escapadas para o templo, a partir dos 12 anos. (...) Também há relatos de discussões entre mãe e filho, quando Jesus era jovem e ainda não havia saído em pregação. Num primeiro momento, ele se levantava e saía, deixando a mãe falando sozinha, mas Maria o chamava aos gritos e ele voltava atrás.


Então tá. Quem disse isso? Está escrito onde? De tudo isso aí, a "escapada" (no singular) aos 12 anos é a única afirmação comprovável pelos Evangelhos. Mais tarde, na matéria, o repórter citará os evangelhos apócrifos, mas menciona nominalmente apenas o de Tiago. O problema é que esse apócrifo, como a própria matéria diz, vai apenas até o nascimento de Cristo, ou seja, não poderia ser a fonte de vários dos trechos citados acima. Entendam: boa parte disso tudo pode até ser verdade, mas em jornalismo a gente não tira esse tipo de coisa do nada; precisamos dar a fonte. Há estudos mostrando que os judeus da classe social da Maria dormiam em esteiras no chão? Ótimo, mas então o repórter precisa dizer no mínimo quem fez a pesquisa.

Como em toda matéria que se preze sobre Maria, não podia faltar o lance dos "irmãos de Jesus":

Contrariando o discurso oficial católico, muitos estudiosos garantem que ela teve outros filhos com José
"Muitos estudiosos" é muleta de jornalista incompetente. Que estudiosos? Queremos nomes e instituições a que pertencem, para sabermos se têm alguma representatividade. Além disso, já foi explicado tantas vezes que o vocabulário do idioma de Jesus tinha apenas uma palavra para designar vários membros da família que é preciso ser muito cara-de-pau para continuar trazendo à tona essa questão. Claro que o repórter não foi atrás de nenhum teólogo que pudesse dar a versão ortodoxa para essa questão, não é mesmo? Porque desse jeito não teríamos a polêmica...

Resolução para 2009: esperar até meia-noite de 31 de dezembro para afirmar que essa ou aquela besteira "encerra o ano".

PS: a imagem é o mosaico da Mãe de Deus de Vladimir, na catedral de Santo Isaac, São Petersburgo, Rússia.