terça-feira, 11 de março de 2008

Com vocês, os "novos" pecados

Um texto da BBC Brasil datado de ontem causou polvorosa no mundo católico, e fez a alegria de jornais que adoram essas coisas pitorescas sobre a Igreja.

Vaticano divulga lista de novos pecados capitais

Foi uma pena que eu não tenha conseguido o texto em italiano do L'Osservatore Romano de domingo, que é a fonte original do rebuliço. Assim eu teria comparado exatamente o que saiu com o que a BBC Brasil disse que saiu (afinal, todos sabemos que a regra é haver diferenças gritantes entre uma e outra coisa). Mas o site da Canção Nova publicou o que parece ser a tradução do texto.

Lendo a notícia na Canção Nova, logo de cara se descarta que os "novos pecados" sejam "pecados capitais". Afinal, pecado capital é um vício do qual derivam vários outros. Em outras palavras: no fim das contas, praticamente todos os pecados são expressões (ou "aplicações práticas") desses sete. E a nova lista traz coisas muito específicas. A Gazeta do Povo, por exemplo, adotou a nomenclatura "pecados sociais". Eu fico com o pé atrás em relação a isso: "pecado social" é um conceito que a TL adora, porque o "pecado de todo mundo" acaba virando o pecado de ninguém, e a responsabilidade individual vai pro espaço - podemos ver isso em alguns folhetinhos de missa, quando no ato penitencial as pessoas são levadas a pedir perdão pelo pecado dos outros, pelo pecado da comunidade, mas nunca pelo próprio pecado. Na verdade, o Vaticano fala de pecados individuais com conseqüências sociais.

Bosch, que vocês já conhecem desse blog, pintou os sete pecados capitais. Abrimos, claro, com o "pai de todos", a soberba.

E também descarto a interpretação de que esses pecados sejam "novos", no sentido de que antes não eram pecado, e agora passam a ser. Qualquer cristão consciente sabia, muito antes dessa lista, que "causar injustiça social" e "poluir o meio ambiente" eram pecados (Deus não colocou o homem no jardim para que cuidasse dele? Então, usar mal os recursos naturais pode ser considerado um dos primeiros pecados, em ordem cronológica...). "Usar drogas", inclusive, já constava até no Catecismo publicado em 1992:
2291 O uso da droga causa gravíssimos danos à saúde e à vida humana. Salvo indicações estritamente terapêuticas, constitui falta grave.
Qualquer pecado sempre foi pecado e sempre continuará sendo. Lembro da época do lançamento do Catecismo de 1992, em que diziam "soltar cheque sem fundo agora é pecado". Bobagem: mesmo antes de 1992, cheque sem fundo já era pecado, pois constitui fraude. Por outro lado, diziam que os duelos tinham saído do catecismo. Óbvio: ninguém mais fica trocando golpes de espada na rua. Mas, caso ainda haja quem prefira resolver suas diferenças assim, um aviso: duelar continua sendo pecado. Da mesma forma, no Catecismo não diz que hackear computadores alheios para pegar senhas é pecado - mas quem duvida de que é uma atitude moralmente errada?

Gula - só porque está quase na hora do almoço.

E ainda nem falamos das interpretações individuais de cada pecado!

Não sei como, porque não solicitei nada disso, estou no mailing de um site humorístico chamado Central de Notícias Populares, com o subtítulo "Jornalismo com responsabilidade social". Pois bem, ontem mesmo recebi um aviso:
Transgênico agora é "pecado" – O pessoal da “Opus Dei” que se relaciona aí com parte da imprensa brasileira, está em apuros. É que o Vaticano incluiu os organismos geneticamente modificados na lista de “pecados modernos”. E pela “cobertura” que os grandes medias dão aos opositores dos transgênicos, uma boa parte já está com seu cantinho reservado no inferno. Claro que lá, estarão em boa companhia, com a Monsanto, a Bunge , a Cargill, a Syngenta e outras empresas que querem patentear a vida e empestiar toda a superfície da terra com os seus royalties.
(OK, pausa para as gargalhadas. É ou não é verdade que socialismo em excesso faz mal ao cérebro?)

Bom, se a infiltração da Obra na imprensa fosse do jeito que esse povo imagina, garanto que o jornalismo brasileiro seria muito melhor - e não sairia tanta bobagem sobre a Igreja na imprensa, concordam?

Agora, vamos ao que o Vaticano entende por "modificação genética". Com a palavra, monsenhor Gianfranco Girotti:
na área da bioética, aonde não podemos deixar de denunciar algumas violações nos direitos fundamentais da natureza humana através de experimentos, manipulações genéticas
Ficou claro ou preciso desenhar? A manipulação genética condenada é aquela feita com seres humanos. O Vaticano não tem nada contra os transgênicos.

A BBC Brasil fez (e outros copiaram) uma listinha de pecados. Curiosamente, no site da Canção Nova não tem listinha nenhuma. Pior ainda - na relação da BBC Brasil tem coisa que simplesmente nem foi mencionada na entrevista com o monsenhor Girotti, como
5. Tornar-se extremamente rico
Na Canção Nova não tem, mas eu queria muito ver se no L'Osservatore Romano saiu algo parecido. Porque ser rico, ou "extremamente rico", não é pecado. O pecado é ter acumulado riqueza explorando outros, recorrendo à fraude, e ser apegado às riquezas. Quem se tornou "extremamente rico" trabalhando duro, remunerando seus empregados de forma justa e não se apegando à riqueza conquistada não faz nada de errado.

A BBC Brasil ainda cometeu uma gafe monstruosa:
Na entrevista ao Osservatore Romano, Girotti recordou as recomendações para se receber o perdão.

"Confissão em 15 ou máximo 20 dias antes ou depois de cometer o pecado, comunhão, oração segundo as intenções do papa, pureza e caridade", disse o clérigo.
Confissão antes de cometer o pecado? Isso simplesmente não existe! Vejamos agora o que saiu na Canção Nova:
Nicola Gori - Não parece que as condições para ter indulgências sejam leves?
Gianfranco Girotti - Se juntamente às condições impostas - confissão sacramental, não mais do que há 15 dias antes ou depois da indulgência, comunhão eucarística e oração segundo as orações do pontífice – pensemos que para adquirir a indulgência também é pedido um grau de pureza e sinais de ardente caridade, coisas difíceis à nossa fragilidade, então diria que aquilo que está estabelecido não é de se minimizar.
O erro é grotesco. A confissão é dias antes ou depois da indulgência, não do pecado! Antes mesmo de eu ler o texto na Canção Nova, o Jorge Ferraz já tinha cantado essa bola: a de que o padre estivesse se referindo a indulgências, que de algum modo a imprensa entendeu como "perdão dos pecados". O que não é surpreendente, já que muitíssimas vezes vi essa confusão nos jornais.

(Desculpem, não achei as reproduções detalhadas dos outros pecados segundo Bosch)


Mas bem que podiam incluir na listinha "distorcer informações sobre a Igreja"...

4 comentários:

Anônimo disse...

Puxa, pena que não salvei a matéria do L'Osservatore Romano (é redundante dizer "o L'Osservatore", como dizer "os The Beatles"?) para depois descobrir, tardiamente, que o jornal não guarda um arquivo eletrônico das edições passadas.

É impressionante como tanto jornal -- Folha Online, FSP, Correio Braziliense, sem falar nos televisivos Jornal Nacional, Jornal da Band -- repete esses disparates feito maritaca sem checar a informação. Checar os dados e fontes é um mínimo que o jornalista tem obrigação de fazer, e eles não cumprem sequer o mínimo? Que credibilidade podemos dar a essas pessoas?

tht disse...

Em matéria religiosa, a Imprensa é tão eficiente em ser ineficiente que foi difícil até pra encontrar a informação original e entender o que foi dito... É o ápice.

Ecclesiae Dei disse...

Meu Deus, a que ponto chegamos! Devemos pensar que o que a imprensa divulga de tão grosseiramente equivocado é burrice ou pura safadeza:Já está ficando difícil acreditar na primeira opção.
Abraços
João Batista

Alexandre Magno disse...

Marcio escreve:

"Eu fico com o pé atrás em relação a isso: 'pecado social' é um conceito que a TL adora, porque o 'pecado de todo mundo' acaba virando o pecado de ninguém, e a responsabilidade individual vai pro espaço - podemos ver isso em alguns folhetinhos de missa, quando no ato penitencial as pessoas são levadas a pedir perdão pelo pecado dos outros, pelo pecado da comunidade, mas nunca pelo próprio pecado. Na verdade, o Vaticano fala de pecados individuais com conseqüências sociais." (negrito meu)

O Catecismo diz:

"§1868. O pecado é um ato pessoal. Além disso, temos responsabilidade nos pecados cometidos por outros, quando neles cooperamos:
—participando neles direta e voluntariamente;
— mandando, aconselhando, louvando ou aprovando esses pecados;
— não os revelando ou não os impedindo, quando a isso somos obrigados;
— protegendo os que fazem o mal.
§1869. Assim, o pecado torna os homens cúmplices uns dos outros, faz reinar entre eles a concupiscência, a violência e a injustiça, Os pecados provocam situações sociais e instituições contrarias à bondade divina. As 'estruturas de pecado' são a expressão e o efeito dos pecados pessoais. Induzem suas vítimas a cometer, por sua vez, o mal. Em sentido analógico, constituem um 'pecado social'."
(negrito meu)

O Vaticano fala de pecados individuais (pecados pessoais, segundo o n. 1869 do Catecismo) com conseqüências sociais, mas também usa, analogicamente, a expressão "pecado social". Se a Teologia da Libertação possui um outro conceito para a expressão "pecado social", temos a opção de descobrir as diferenças entre um emprego e outro. Isso não me parece tão simples e direto como o que foi dito por Marcio sobre o "pecado de todo de mundo".