segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Esqueçam CSI ou Cold Case, o negócio é a autópsia de Jesus

Prometi e vou entregar. A IstoÉ dessa semana traz na capa um Cristo crucificado e anuncia em letras garrafais a, hm, "autópsia" de Jesus. Claro que é uma figura de linguagem (pelo menos assim espero), porque até onde eu sei o corpo de Jesus está glorioso no céu (exceto para os charlatães daquele archeo-porn* chamado O Sepulcro Esquecido de Jesus)

Em resumo, a reportagem tem como pretexto o lançamento, no Brasil, do livro de um legista americano chamado Frederick Zugibe, sobre a causa da morte de Jesus - claro, ele morreu crucificado, mas como morre uma pessoa crucificada, do ponto de vista médico? Então, a reportagem está aqui:

Como morreu Jesus

Li tudo e não vi nada ali que desabonasse a pesquisa do legista, parece uma coisa super bem feita, com critérios bem científicos. Mas a repórter, Natália Rangel, resolveu dar uma exagerada na coisa. Ela começa o texto assim:

De duas, uma: sempre que a ciência se dispõe a estudar as circunstâncias da morte de Jesus Cristo, ou os pesquisadores enveredam pelo ateísmo e repetem conclusões preconcebidas ou se baseiam exclusivamente nos fundamentos teóricos dos textos bíblicos e não chegam a resultados práticos.
Bom, custava dar um exemplo desses dois extremos? E o pior é que a afirmação dramática da repórter sequer é verdadeira. Afinal, algumas décadas atrás Pierre Barbet já tinha feito uma análise da morte de Jesus no seu A Paixão Segundo o Cirurgião. Barbet será citado na reportagem, lá no finzinho, quando a repórter nos contar que suas conclusões serão refutadas por Zugibe, mas isso não invalida o fato de que, antes do americano, alguém foi lá e se dispôs a fazer uma pesquisa dessas.

A segunda forçada de barra vem logo depois:

Nunca faltaram, através dos séculos, hipóteses sobre a causa clínica de sua morte. Jesus morreu antes de ser suspenso na cruz? Morreu no momento em que lhe cravaram uma lança no coração? Morreu de infarto?

Bom, tirando essa última pergunta, para responder as outras duas não é preciso ser médico; na verdade, não é necessário nem ser alfabetizado. Qualquer analfabeto com bom senso que for à missa do Domingo de Ramos, ou ao ofício da Sexta-Feira Santa, vai ouvir o relato da Paixão e comprovar que, pregado na cruz, Jesus conversa com as pessoas. Gente morta não conversa, então Cristo só pode estar vivo. E, se o relato for de São João, ainda vai ouvir

(Jo 19)
33 Chegando, porém, a Jesus, como o vissem já morto, não lhe quebraram as pernas,
34 mas um dos soldados abriu-lhe o lado com uma lança e, imediatamente, saiu sangue e água.
Ou seja, quando deram o golpe de lança, Jesus já estava morto.

Bom, na seqüência a reportagem vai descrevendo vários detalhes da morte de Jesus. Alguns sinceramente me deixaram com vontade de dizer "tá, agora conte algo que eu ainda não saiba", pois dados como o fato de Jesus ter carregado apenas a parte horizontal da cruz e ter sido pregado pelos pulsos, e não na palma das mãos, já são conhecidos por muita, mas muita gente. Mas quem sabe isso seja implicância minha - tem quem ainda não saiba.

Fora isso, só me resta comentar o box mostrando as "incoerências" do filme do Mel Gibson. Isso não é invenção da repórter tentando colocar o médico contra o ator/diretor, pois, segundo o texto, o próprio Zugibe critica Gibson. Mas algumas das tais "incoerências" têm resposta.

  • No caso de Jesus carregar a cruz inteira e ser pregado pelos pulsos (no filme), o próprio Gibson já havia dito, na época da estréia, que ele sabia muito bem que não tinha sido assim, mas havia preferido colocar no filme o que a iconografia cristã costumava representar.
  • No caso da pancada no olho, fiquei curioso para saber como o médico comprova que Jesus não levou esse golpe mostrado no filme. Verdade que não está no Evangelho, mas todo mundo sabe que a Bíblia não foi a única fonte de Mel Gibson para montar o filme.
  • Quanto ao "descanso para os pés" de Jesus, que aparece no filme, diz a reportagem que, segundo Zugibe, é uma invenção de artistas do século passado. Sei. Olhem a infografia da página 81. Tem descanso para pés. E a pintura é um afresco de Fra Angelico (que certamente não viveu no século passado, nem no retrasado). Vejam agora esse Cristo na Cruz de Diego Velázquez:



    Tem descanso para pés. E Velázquez também não é um pintor contemporâneo.

    Voltando ainda mais no tempo, uma crucifixão retratada por Giotto:



    Olha só o descanso para pés de novo. E Giotto é ainda mais antigo que Fra Angelico.

    E, a parte religiosa da matéria até que não estava mal. O problema é que eu também conheço um bocadinho de arte...

    * "archeo-porn" foi a expressão usada por um arqueólogo para descrever o documentário do Simcha Jacobovici. O arqueólogo disse isso na cara do cineasta num debate promovido pelo próprio Discovery Channel, exibido logo após uma sessão do documentário. O cara simplesmente detonou várias das premissas do trabalho, e o Jacobovici olhando com cara de mané, sem saber o que responder. Foi um momento impagável.
  • 5 comentários:

    Anônimo disse...

    Márcio:

    Bravíssimo! A matéria é um estelionato só. As chamadas falam em autópsia. O texto fala em "simulação das condições da morte" ou coisa que o valha...


    Mas arrume a frase "...quando a repórter nos conta(r)..." lá no sexto parágrafo. Evidentemente, pode pular esse post (ou editá-lo).

    Anônimo disse...

    Márcio, li um livro que hoje é questionado por historiadores - confesso, na minha ignorância, não apreender o porquê - mas que foi à sua época um clássico: E a Bíblia Tinha Razão, de Werner Keller.

    Nesse livro, todavia, há uma informação sobre esse descanso para os pés, com o nome de "sedile", que seria (foi?) um acessório criado pelos romanos para estender a duração do suplicio na cruz. Ele funcionaria da seguinte maneira: ao começar a desfalecer, o apenado involuntariamente faria um movimento de reflexo, friccionando a peça de madeira com os pés. Dessa forma, reconduziria a circulação ao cérebro, reiniciando, portanto, o suplício. Com esse artifício, conseguia-se manter um crucificado vivo por mais de um dia, até, propiciando a tortura adicional de sentir, na consciência, as bicadas dos abutres, perto dos derradeiros suspiros.

    Considerando o peso que a pena de crucifixão tinha para os romanos - destinava-se aos criminosos mais odiados por Roma - não seria infundada a preocupação em elevar essa pena ao paroxismo do sofrimento, com sua carga exemplar visível o máximo de tempo possível.

    Bom, isso no livro de Keller. Não pesquisei mais sobre o "sedile".

    Eduardo

    Emerson disse...

    Bravo, Marcio. Excelentissimus textus. Continue assim.

    Wagner disse...

    Enfim, a matéria tem problemas. Mas agora eu entendo porque a notícia do indizinho não foi capa...

    Norberto Well disse...

    BRAVO, TAMBÉM DIGO EU. Mas sabendo de sua origem católica, gostaria de saber onde foi colocado o se gundo mandamento escrito pelo dedo de Deus e entregue a Moisés que consta no livro de Êxodo no capítulo 20 versículos 4,5 e 6 e em Deuteronômio capítulo 5 versículos 8, 9 e 10 e, aproveitando a deixa poderia ler, se é que vcs se importam com a carta de amor que Deus deixou aos homens, o versículo 2 da capítulo 4 ainda de Deuteronômio e para fechar os versículos 18 e 19 da capítulo 22 do livro de Apocalipse. Enfim, o que tem uma coisa com a outra? Pai, como perdoar-lhes?, eles sabem o que fazem...