sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Inferno!

Como diria minha colega Cecilia, "inferno!" Essa é do Terra, mas no meio do texto descobrimos que o culpado maior é o espanhol El País - que, por sua vez, joga a responsabilidade para o italiano La Repubblica. Mas fiquemos naquilo que os brasileiros lerão:


Papa diz que o inferno existe e não está vazio



(um pedacinho do inferno segundo um dos meus pintores preferidos, Hieronymus Bosch)

Bom, por si só isso nem renderia manchete para mim; o Papa disse apenas o óbvio. Mas vamos ao texto:

O papa Bento XVI afirmou que o inferno existe e não está vazio, ao contrário do que seu antecessor, João Paulo II, dizia. "O inferno, de que se fala pouco neste tempo, existe e é eterno", já havia afirmado o pontíficie no ano passado.
Em um encontro que marca o início do período da quaresma, o Papa mandou um recado para os católicos, dizendo que a salvação não é imediata nem chegará a todos, de acordo com o jornal La Repubblica.
No ano passado, ele já havia afirmado que "o inferno, do qual se fala pouco nestes tempos, existe e é eterno", ressaltou o site do jornal El País. Em 1998, João Paulo II esclareceu conceitos sobre céu, inferno e purgatório. Para ele, o inferno não era um local, mas "a situação de quem se afasta de Deus".


Em primeiro lugar: o que Bento XVI efetivamente disse hoje (ou ontem, que seja)? Não sabemos. As únicas aspas do Papa são... do ano passado. Bom, notícia do ano passado era boa de ler no ano passado.

E agora o pior de tudo, que eu destaquei em negrito: "ao contrário do que João Paulo II dizia"???? Vamos analisar a frase. Se para Bento XVI o inferno existe e é eterno, e isso é o contrário do que João Paulo II dizia, a gramática e a lógica nos fazem concluir que, então, João Paulo II ensinava que o inferno ou não existia, ou não era eterno.

Sorte nossa que o Terra nos mostra o que João Paulo II disse:

Em 1998, João Paulo II esclareceu conceitos sobre céu, inferno e purgatório. Para ele, o inferno não era um local, mas "a situação de quem se afasta de Deus".


Os caras do Terra não conseguem nem ler número em espanhol direito. Lá no El País diz-se que essas declarações são do verão de 1999. Mas vamos às palavras do Papa. Bom, João Paulo II define o inferno. Daí se conclui logicamente que o inferno, sim, existe. Se não existisse, não seria nada, certo? Mas diz João Paulo II que é "a situação de quem se afasta de Deus".

Agora, quanto a ser ou não eterno, o Terra nos deixa na mão. Então precisamos ir à fonte original, a audiência de João Paulo II em que ele fala do inferno. Curiosamente, nem Terra nem El Pais nos dizem o dia exato em que a audiência ocorreu (talvez para que não descobríssemos que a coisa não é bem como eles noticiaram), então eu tive o trabalho braçal de procurar no site do Vaticano.

Audiência de 28 de julho de 1999

Logo no comecinho:

Em sentido teológico, contudo, o inferno é outra coisa: é a última consequência do próprio pecado, que se vira contra quem o cometeu. É a situação em que definitivamente se coloca quem rejeita a misericórdia do Pai, também no último instante da sua vida.


Repararam no "definitivamente"? Pois bem: segundo João Paulo II, o inferno não só existe, mas também é eterno. Onde está a contradição em relação ao que disse Bento XVI?

Sobrou uma última possibilidade de oposição: a noção de inferno como "lugar" ou "situação". Isso se resolve também no texto da audiência:

O inferno está a indicar, mais do que um lugar, a situação em que se vai encontrar quem de maneira livre e definitiva se afasta de Deus, fonte de vida e de alegria.


"Mais do que um lugar" - ou seja, o inferno é principalmente situação, mas também é lugar. Do contrário, o Papa teria dito que o inferno "não é um lugar, mas uma situação".

Para terminar, a cereja no bolo: na home page do El País, o seguinte textinho logo abaixo do título "Bento XVI: o inferno existe": "El Papa contradice de nuevo a su predecesor Juan Pablo II". Peraí: como assim, "de novo"? E a matéria nem se dispõe a explicar em que outras ocasiões Bento XVI "contradisse" João Paulo II.

Fechando a questão, então: o inferno existe, não está vazio e deve ter um círculo reservado para jornalistas.

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