... mas o Luís Milman, doutor em Filosofia e professor da UFRGS, já acha que pode falar do que não entende. Tudo bem que ele escreveu um
artigo muito legal sobre o Obama hoje na
Gazeta do Povo, que no blog dele ficam desmascaradas todas as palhaçadas da mídia sobre a guerra em Gaza, mas a julgar pelo que ele publicou anteontem, devia se limitar à política...
Vamos lá: o texto dele se chama
Bento XVI e a Oração pelos Judeus. O tema é a oração da Sexta-Feira Santa pela conversão dos judeus no rito tridentino.
É preciso lembrar que a oração pelos judeus é parte da liturgia da Sexta-Feira Santa há muito tempo, e não foi abolida nem pelo Concílio Vaticano II, nem pela reforma litúrgica de 1969. O que aconteceu foi uma
mudança nas palavras da oração.
Até 1959, rezava-se pelos "pérfidos judeus". Vocês sabem que, em português, "pérfido" tem uma conotação negativa, assim como em outras línguas modernas. Mas em 1959 rezava-se apenas
em latim, então é necessário que se busque o significado
latino da expressão. E, em latim, "pérfido" tem o significado principal de "sem fé" - o que, devemos reconhecer, corresponde à realidade, já que os judeus não reconhecem Cristo como o Messias.
Mas em 1959 João XXIII mudou a oração e retirou o adjetivo. Isso quer dizer que, se o missal tridentino usado atualmente é o de 1962, ele já não traz a expressão. Ou seja, um dos motivos de gritaria simplesmente
não existe. Um trecho da oração do missal de 1962 dizia:
[Deus] elimine a cegueira deste povo para que, reconhecida a verdade de sua luz, que é o Cristo, saiam das trevas.
Em 2008, Bento XVI modificou especificamente esta oração pelos judeus, que ficou assim (traduzida em português, porque ela continuará a ser rezada em latim):
Oremus et pro Iudaeis (Rezemos pelos judeus)
Que o Deus nosso Senhor ilumine seus corações para que reconheçam Jesus Cristo, Salvador de todos os homens. Deus onipotente e eterno, vós que quereis que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade, concedei que, entrando a plenitude dos povos em cossa Igreja, todo Israel seja salvo.
Então, nós temos
quatro orações pelos judeus. Cuidado pra não se perder:
1. a oração tridentina, pré-1959, que falava dos "pérfidos judeus";
2. a oração tridentina, pós-1959, modificada por João XXIII, que não tem mais o "pérfidos", mas fala da "cegueira";
3. a oração tridentina, modificada por Bento XVI em 2008, a do "todo Israel seja salvo". Lembro que
essa é a oração que está valendo para os fiéis adeptos da liturgia tridentina;
4. e, por fim, a oração pelos judeus
no rito novo, que diz:
Oremos pelos judeus, aos quais o Senhor Nosso Deus falou em primeiro lugar, a fim de que cresçam na fidelidade de sua aliança e no amor do seu nome. Deus eterno e todo-poderoso, que fizestes vossas promessas a Abraão e seus descendentes, escutai as preces da vossa Igreja. Que o povo da primitiva aliança mereça alcançar a plenitude da vossa redenção. Por Cristo nosso Senhor.
Resolvido esse problema, sigamos em frente. Milman diz com todas as letras que a oração tridentina em vigor atualmente (3) não é antissemita. Ele diz que as orações anteriores (1 e 2) o eram. Não acho que sejam. Antissemitismo é uma discriminação de raça, e não de religião. Mas de qualquer maneira, como essas duas orações já estão fora dos livros, não precisamos discutir aqui sobre elas.
Mas os rabinos não gostaram sequer da oração (3). Sinceramente, aí não é problema nosso. Na verdade, a oração (3) não é muito diferente da oração (4), pois ambas pedem a conversão dos judeus (o que vocês acham que "plenitude da salvação" significa?). Talvez os rabinos não gostem da (4) também.
Milman continua:
É de se questionar: quais foram as razões do Papa Bento XVI - que pertenceu à Juventude Hitlerista - para tê-lo reintroduzido?
Enquanto Ratzinger for vivo, sempre haverá alguém para retomar essa babaquice de Juventude Hitlerista. Precisamos lembrar que a filiação à Hitlerjugend era
obrigatória na época em que Ratzinger era adolescente, e que sem ela os meninos tinham problemas? Milman, leia a autobiografia do Ratzinger e você descobrirá que a família do Papa era totalmente antinazista.
E de que "reintrodução" Milman fala? Da oração pelos judeus? Mas sempre houve oração pelos judeus! Milman fala como se a Igreja tivesse deixado de rezar pelos judeus na Sexta-Feira Santa por alguns anos, e então pum!, Bento XVI, o Papa alemão, vem e reintroduz uma oração...
O que Bento XVI
realmente fez?
1. permitiu a utilização universal do missal tridentino de 1962. Bom, lá havia uma oração pelos judeus, rezada uma vez por ano. Assim como há diversas outras orações. Não dava para o Papa reintegrar um missal inteiro e dizer "restauramos tudo, menos essa oração pelos judeus. Vai ficar sem nada no lugar".
2. Substituiu a oração que Milman considera antissemita (a 2) por uma que Milman
não considera antissemita (a 3)!
A decisão de Bento XVI contraria a orientação conciliar do Vaticano II, segundo a qual a Igreja e todos os católicos devem lutar pela liberdade religiosa e promovê-la, pois a liberdade de religião expressa a liberdade de consciência.
Milman leu (será que leu mesmo?) a
Dignitatis Humanae e entendeu errado. Liberdade de consciência significa que ninguém pode ser forçado a aderir a uma religião contra a sua vontade. Liberdade de consciência
não significa renunciar à evangelização, ou renunciar à pretensão de ter a plenitude da verdade. Aliás, o Concílio Vaticano II diz, mais de uma vez, que a Igreja é necessária para a salvação.
Sua preocupação com os judeus é intempestiva.
Por quê? Bento XVI não mandou substituir uma oração antissemita por uma oração que não é antissemita? Isso não é bom?
Não me aprofundo no tema doutrinário
Percebe-se.
Não há porque fazer retornar, a um Missal, uma prédiga tópica que pede pela salvação de Israel (sic).
A Igreja pede pela salvação de todo mundo. Inclusive, a oração da Sexta-Feira Santa, além de pedir pelos judeus, pede também por quem não acredita em Cristo, por quem não acredita em Deus... queria que Milman respondesse: é errado rezar pela salvação dos outros? E lembro que não tem nada "retornando" ao Missal como se algum dia não tivesse estado lá: a oração pelos judeus faz parte da liturgia há uns bons séculos, e
nunca foi interrompida.
Esse passo do Papa preocupa
Que passo? Substituir uma oração antissemita (na opinião de Milman) por uma oração que não é antissemita (também na opinião de Milman)?
Bento XVI não é antissemita, estou certo disto. Mas a recuperação da Oração pelos Judeus desperta uma discussão que não aproxima judeus e católicos.
Mais uma vez Milman insiste numa "recuperação" que não houve.
Seria bom para todos que Bento XVI fizessse esforços diplomáticos no sentido de conseguir uma reaproximação com interlocutores judeus, sem enfatizar a profissão de fé que julga a fé dos outros. João XXIII certamente teria agido deste modo.
Milman acha que pode adivinhar como João XXIII teria agido... pois bem, a gente sabe como João XXIII
efetivamente agiu: deixou no Missal uma oração (antissemita, segundo Milman) que falava da "cegueira" do povo judeu e pedia que Deus "retirasse o véu que cobre seus corações".
Conheço gente que ficará desapontada...